Dica: Para seguir minha jornada - Livro traz pérolas da vida de Chico Buarque
Foi em uma coleção de revistas e jornais da tia Cecília, irmã de Sérgio Buarque de Hollanda, pai do músico, que a jornalista Regina Zappa encontrou a maior parte dos mais de 100 verbetes de Para seguir minha jornada, o almanaque que tem a proposta de percorrer a vida de Chico Buarque em pílulas independentes.
A obra foi lançada no último dia 19, no Rio de Janeiro e apesar de não ter contado com a presença do biografado, a cerimônia foi prestigiada por nomes como Miúcha (irmã de Chico) e Paulo Jobim (filho de Tom).
Chico Buarque foi reprovado no exame da Ordem dos Músicos em julho de 1967. Segundo os examinadores, não sabia solfejar. Só restava ao compositor cantar em programas de Iê-iê-iê. Pela lei, sem aprovação da ordem, ele estaria impedido de cantar em programas de MPB.
Curiosamente, no ano anterior, Chico tentara convencer Roberto Carlos, o rei do Iê-iê-iê, a migrar para o lado da música brasileira e deixar de lado as guitarras. O compositor também gostava de escrever textos para os encartes dos discos, mas abandonou o hábito ao longo do tempo. E não, Chico Buarque não é tímido, é arredio mesmo, não gosta de assédio e ponto.
Cecília colecionava todas as publicações sobre o sobrinho e mantinha em casa uma fonte de histórias que Regina tratou de organizar. Para seguir minha jornada é um livro de pesquisa. Além do arquivo da tia, a jornalista mergulhou nas coleções do próprio Chico, aproveitou entrevistas feitas para outros três livros sobre o compositor e compilou tudo em um texto.
Originalmente, o livro consistia em uma narrativa única e corrida, mas a opção gráfica se tornou interessante diante da quantidade de imagens encontradas na pesquisa e o volume virou uma enciclopédia. “A opção gráfica foi uma coisa que veio depois, ele foi concebido mais ou menos como um almanaque que tivesse um texto como fio condutor, um texto-base com a trajetória do Chico e verbetes que fossem explicando e contando coisas sobre pessoas e acontecimentos que tiveram alguma ligação com a trajetória dele”, avisa Regina.
Repetições são uma das marcas do livro. Muitas histórias aparecem em vários verbetes e a autora não hesita em recontar a filiação do compositor em cada momento em que se refere à família ou de repassar várias vezes alguns acontecimentos, como a reprodução das impressões da crítica diante da música de Morte e vida severina ou as comparações com Guimarães Rosa, quando Chico inventou a palavra “penseiro” para Pedro pedreiro. “Imaginei que os verbetes pudessem ser lidos de forma independente. Sei que tem coisas repetidas propositadamente ao longo do livro por conta disso.”
O mais interessante do almanaque de Regina está na própria fala de Chico. O trabalho de pesquisa permitiu resgatar entrevistas das quatro últimas décadas, e é por essas frases que o leitor acompanha boa parte do desenvolvimento da música brasileira no século 20. Um dos últimos verbetes ajuda a dar a medida cronológica e do amadurecimento do próprio Chico.
Dedicado aos vícios, um pequeno texto no fim do livro narra a fissura do compositor pelo uísque e pelo cigarro nos anos 1960, pela vodca e caipirinha nos 1970, o abandono dos destilados, nos 1980, e a chegada do vinho nos 1990. Em entrevista concedida à revista Fatos e fotos, em 1967, Chico fala do prazer encontrado no tabagismo. Em outra, para uma edição da Manchete, de 1980, revela gostar de beber, mas evita a apologia. Já na entrevista à Trip, de maio de 2006, conta ter fumado maconha e experimentado cocaína. O trecho é um exemplo de como a trajetória do artista é aos poucos resumida nas entrevistas e nos verbetes.
Canções
Regina escreveu três livros sobre o compositor antes de se debruçar sobre o almanaque. Chico Buarque — Cidade submersa reúne fotos em que Bruno Veiga interpreta 30 canções comentadas pelo autor e Chico Buarque faz parte da coleção Perfis do Rio. Em Cancioneiro songbook Chico Buarque Biografia, Regina conta de forma cronológica e tradicional a história do biografado.
A novidade em Para seguir minha jornada está na quantidade de periódicos de época aos quais a autora teve acesso. “Fiz questão de ser um livro de pesquisa, porque entrevistas com ele eu fiz muitas ao longo desses três livros. Mas eu o consultei algumas vezes, ele me contou algumas histórias.” Ao final do livro, o material foi digitalizado e está disponível no Instituto Tom Jobim, organizado e classificado para quem quiser consultar, inclusive, on-line.
Entre coisas que Regina nunca ouvira estava a versão de Chico para o show que todo mundo atribuía ao produtor André Midani. Não foi dele a ideia de Caetano e Chico e sim de Roni Berbert de Castro, amigo de Chico e dono de uma loja de discos em Salvador, que queria dar um fim ao circo em torno da rivalidade entre os dois compositores. Midani se apropriou da ideia e produziu o encontro no Teatro Castro Alves, em novembro de 1972.
Outra lembrança que andava guardada foi a participação no programa do Chacrinha. “E eu não lembrava e nunca tinha lido de o Chico ter ido ao Chacrinha, então ele me escreveu contando como foi. Ele tem uma memória muito boa, corrigiu datas e informações, a gente foi trocando figurinha por e-mail, mas entrevista formalmente não fiz nenhuma para este livro.”
Parceiro de shows: com Caetano, para acabar com a rivalidade |
O livro
Não é que tenha só novidades, porque tem alguma, mas não é tudo. Tem coisas que ficaram no passado e que eu trouxe de volta para ajudar a compor o quadro da história dele e entendê-lo melhor. Tem coisas muito singelas que a maioria das pessoas não lembra mais.
Timidez
O Chico não é tímido não, ele é engraçado, espirituoso, fala bastante. É muito reservado, o que é diferente. Ele ficou muito famoso muito cedo, com 22 anos tinha feito A banda e virou uma celebridade, não podia sair na rua, era um pop star. A essa coisa de celebridade instantânea, ele reagiu se protegendo. Mas a própria Maria Amélia (mãe) dizia que Chico não era nada tímido, era o mais extrovertido dos irmãos, o mais bagunceiro. Então acho que não é timidez, é uma proteção, uma reserva.
Ele diz que a imprensa elege uma época para falar mal dele, outra época para falar bem e também distorcer coisas ou falar da família como algumas revistas já falaram. São coisas que deixaram ele um pouco com o pé atrás. É o que eu acho, não é nada que ele já tenha dito para mim. Ele me disse uma vez que ele lia o jornal de capacete de tanta porrada. Ele fala bastante e às vezes elege um veículo. Mas se puder não falar acho que ele prefere.
Relação com Chico
Começou quando fiz uma entrevista com ele sobre o disco As cidades. Acho que ele gostou da entrevista. Logo depois a editora Relume Dumará me pediu para escolher uma pessoa para produzir um perfil. Eu tinha acabado de fazer essa entrevista e falei em fazer o perfil do Chico. Aí eles falaram que ia ser impossível, que o Chico não ia topar e tal. Telefonei para ele e deixei um recado falando que queria escrever o livro. No dia seguinte ele me ligou, perguntou como era o livro e fui falando.
Ele não falava nada e fui ficando meio aflita, achando que estava achando aquilo tudo um horror. Aí chegou uma hora em que parei e perguntei: “Então, o que você acha?”. Ele achou ótimo. Comecei a fazer as entrevistas para o livro, saía caminhando com ele, fiz muitas entrevistas, fui ver o show em outros lugares, conversei com toda a família, com os amigos, parceiros, outros artistas e aí fiz esse livro. A partir daí a gente estabeleceu uma relação de confiança, de respeito.
Trechos de entrevistas de Chico Buarque reproduzidas em Para seguir minha jornada (Regina Zappa)
"Eu não me sentia arquiteto, ou planejador. Não estava projetando, mas criando as cidades com problemas e coisas já funcionando. Não era urbanismo. Tinha a ver com fantasia, com a história e a realidade. Minhas cidades tinham ponto de ônibus, tinham cinemas…"
"A casa do Oscar era o sonho da família. Havia o terreno para os lados da Iguatemi, havia o anteprojeto, presente do próprio, havia a promessa de que um belo dia iríamos morar na casa do Oscar. Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar. Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno da Iguatemi. Desse modo a casa do Oscar, antes de existir, foi demolida. Ou ficou intacta, suspensa no ar, como a casa no beco de Manuel Bandeira. Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra minha mãe e saí batendo a porta da nossa casa velha e normanda: só volto para casa quando for a casa do Oscar! Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguases, projeto do Oscar. Vivi seis meses naquele casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. Regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho um canudo com a casa do Oscar. Depois larguei arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é a casa do Oscar."
"Eu não sou tímido na minha vida normal. Mas não acho que seja normal subir no palco e cantar. Ali, realmente, travo um pouco. Não sei como vai ser o próximo show, espero não sofrer. Eu gosto dos ensaios, gosto de viajar com os músicos, essa coisa toda é muito boa, a gente se diverte muito. Mas entrar no palco, uma estria, quando penso agora fico um pouquinho apreensivo. Às vezes, a boca fica seca; Sei lá, acontece mesmo de esquecer tudo, de dar tudo errado. Mas ao longo da temporada vai melhorando. (Entrevista a Fernando Eichenberg na revista Gol Linhas Aéreas Inteligentes, 2006)
"Eu gosto é de compor. Nunca estive à vontade no palco. Não é por timidez. É vergonha mesmo. Ando desengonçado e às vezes fico com cara de idiota (…). Acho que quem vai aos meus shows não fica esperando uma grande performance, um grande cantor. É um compositor que canta. (Vídeo do site de lançamento do disco Chico, 2011).
Essa matéria foi extraída do site Pernambuco.com. Confira aqui.
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